Difícil ter
vida pessoal no final do ano, já que esta é a época em que, aqui na dimensão
onde tempo é dinheiro, é preciso alimentar ainda mais a roda viva com sangue e suor. Hoje, porém, depois de semanas, finalmente consegui ir a uma aula de yoga.
Fim da aula, hora
de fazer a postura do cadáver (savasana),
se entregar e relaxar. Estou eu lá “fazendo a defuntona” quando de repente
começam a emergir imagens em minha mente. Enquanto solto no chão cada parte do
meu corpo, vejo uma mulher morta deitada numa mesa de necrotério e me lembro do
sonho que tive esta noite. Na cidade do interior onde vivem alguns parentes, meu pai, que é médico, recebia um chamado para
ir fazer a autópsia de uma mulher. Eu ia junto. A mulher era uma artista,
cantora, e estava lá, estendida na morgue. Eu não queria olhar, a cena era
feia, a mulher estava cinza, dura, mas os médicos insistiam que eu acompanhasse
tudo, apesar da minha resistência. De volta a yoga, começo a sentir todo o meu
corpo vibrar e me dou conta do significado do sonho. Obviamente, a defuntona era
eu, por isso estava tão difícil de encarar. Não é fácil ver tudo o que está
morto no nosso interior, não é legal ver a vida apodrecer e ficar cinza, sem
música e sem arte.
Caminhando de
volta pra casa, comecei a pensar sobre a morte e sobre todo esse papo apocalíptico
que anda pipocando no inconsciente do planeta. Como astróloga, posso dizer que
há sim, um clima de morte no ar: quadratura de Urano com Plutão, conjunção de
Plutão com Marte, Saturno em Escorpião e toda essa conversa que eu vivo
repetindo por aqui. Tem sim uma nhaca astral pairando sobre nossas cabeças, agora
se isso significa o fim do mundo eu não faço mesmo a menor ideia. No mais, acho
engraçado esse medo todo que temos de morrer e de ver o mundo acabar. Apocalipse
na verdade significa Revelação, e acho que é disto que estamos precisando. Fazendo
a defunta ali na aula entendi que estou morta, que é preciso sentir a vida
vibrar. E tenho fortes suspeitas de que não sou a única... Grande parte da
humanidade está morta e o mundo já acabou faz tempo. Deve ser por isso que andam tão na moda estes filmes e séries sobre vampiros e zumbis. Os mortos-vivos
somos nós, e a humanidade não precisa morrer, e sim renascer.
Enquanto
pensava sobre isso, a rádio FM que tenho em minha cabeça sintonizava “Promessas
de Sol”, do Milton Nascimento, música que
trata da nossa típica capacidade de negação em relação aos fatos históricos que
envolvem a questão indígena. Eu ouvia assim: “Que tragédia é essa que cai sobre
todos nós? Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” Impossível não fazer associação imediata à
tragédia guarani-kaiowá e a de tantas outras etnias indígenas espalhadas pelo
Brasil e por toda a América...
Ok, ok. Sei
que neste ponto sempre tem aquela alma sebosa pra perguntar: “Ora, Luciana, mas o que os
guarani-kaiowá tem a ver com tudo isso? E o que eu tenho a ver com tudo isso? Você
também vai se render a mais esta modinha de falso ativismo facebookiano?”.
Respondo: tem a ver com você o mesmo que a
defunta tem a ver comigo e que o apocalipse tem a ver com toda humanidade.
Temos medo e negamos o óbvio, aquilo que está na frente do nosso nariz mas não
queremos ver. Os índios carregam parte da
nossa sombra e nos mostram num espelho tudo que fizemos com o planeta, com
nossos corpos, almas, com nossas
culturas. Lutamos dia a dia pela vida e por um pedaço de chão, e muitas vezes
só conseguimos viver em minúsculos apartamentos, apinhados, uns em cima dos outros, com os pés
muito distantes da terra. Eu passo meses sem colocar meu pé num chão de terra!
Não temos mais ligação com nossos instintos, destruímos os nossos corpos nos
alimentando de veneno e ração industrializada, feita a base de milho
transgênico. Cultuamos a nudez plastificada, siliconada e ridicularizamos os
corpos em suas medidas e formatos naturais. Desprezamos o folclore e a cultura de raiz para absorver tudo que é enlatado e importando. Não temos conexão com a natureza e
quase morremos de alergia com uma picada de pernilongo. Não reconhecemos a
divindade do Sol, da Lua e do trovão, nem a alma dos animais, mas pagamos
fortunas a pastores estelionatários, a padres pedófilos e nos entupimos de
carne intoxicada por hormônios.
Não temos
raízes, não temos cultura, esquecemos a conexão com a alma e com o espírito, não
sabemos quem somos. Vivemos como vampiros, extraindo da terra, dos animais e
uns dos outros o alimento e a energia que precisamos para sobreviver, sem dar
nada em troca a não ser morte e destruição. Isto para mim é morte em vida, e
sinceramente creio que a grande revelação apocalíptica acontecerá quando cada
ser humano se der conta de tamanha tragédia.
Se alguém quiser ouvir a música, esta é uma versão do Tarancón, uma das minhas preferidas: